sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

Capitulo 9 - Rangers Ordem dos Arqueiros VOL 2

Se ela não tivesse falado, eles a teriam tomado por um garoto. Foi a voz suave que revelou quem era. Estava pa-rada na beira do acampamento, um vulto magro com ca-belos loiros curtos, como os de um menino, vestindo uma túnica esfarrapada, calças e botas de couro macio amarra-das até os joelhos. Um colete de pele de carneiro man-chado e rasgado parecia ser sua única proteção contra as noites frias da montanha, pois ela não tinha nenhum ca-saco e não levava cobertores. Apenas uma pequena ban-dana amarrada como uma trouxa que, possivelmente, con-tinha todos os seus pertences.
— De onde diabos você apareceu? — Gilan per-guntou virando-se para observá-la.
Ele guardou a faca e permitiu que Carney caísse de joelhos, exausto e agradecido.
A garota, que Will agora via ter aproximadamente a sua idade e que debaixo de uma grossa camada de sujeira também era extremamente bonita, fez um gesto vago.
— Ah... — ela fez uma pausa hesitante, tentando raciocinar, e Will percebeu que estava muito cansada. —
Estou escondida nas colinas há várias semanas — disse finalmente.
Will teve que admitir que a aparência dela mostrava que estava dizendo a verdade.
— Como você se chama? — Gilan perguntou com certa suavidade.
Ele também viu que a garota estava exausta.
Ela hesitou parecendo não saber se deveria revelar o nome.
— Evanlyn Wheeler, do Feudo Greenfield — ela contou. Greenfield era um pequeno feudo da costa de A-raluen. — Estávamos aqui visitando amigos... — ela parou e desviou o olhar de Gilan.
A garota pareceu pensar por um instante antes de corrigir a frase.
— Na verdade, minha patroa estava visitando ami-gos quando os Wargals atacaram.
— Wargals? — Will repetiu inquieto, o que fez a moça colocar nele seu par de brilhantes olhos verdes.
Ao encará-los, Will percebeu que a moça era mais que bonita. Ela era maravilhosa. Os lindos cabelos loiros e olhos verdes eram completados por um nariz pequeno e reto e uma boca carnuda que Will achou que ficaria deli-ciosa se ela estivesse sorrindo. Mas naquele exato mo-mento sorrir não estava nos planos da menina. Ela levan-tou os ombros tristemente quando respondeu.
— Aonde você acha que todas as pessoas foram? — ela perguntou. — Os Wargals têm atacado cidades e
vilas em toda esta região de Céltica, há semanas. Os celtas não conseguiram enfrentá-los. Foram expulsos de suas casas. A maioria fugiu para a península do sudoeste, mas alguns foram capturados. Não sei o que aconteceu com eles.
Gilan e os dois garotos se entreolharam. Bem lá no fundo, vinham esperando ouvir alguma coisa parecida. Agora, era um fato.
— Achei que a mão de Morgarath estava atrás dis-so tudo — Gilan disse devagar, e a garota concordou com lágrimas nos olhos.
Uma delas escorreu pela face marcando seu trajeto na sujeira que a cobria. Ela pôs uma das mãos nos olhos, e seus ombros começaram a sacudir. Rapidamente, Gilan se aproximou e a segurou exatamente antes que ela caísse. Ele a abaixou delicadamente até o chão e a recostou em uma das pedras que os garotos tinham arrumado em volta da fogueira. Sua voz era suave e piedosa.
— Está tudo bem — ele a consolou. — Agora vo-cê está em segurança. Descanse um pouco, vamos dar al-guma coisa para você comer e beber.
Ele olhou rapidamente para Horace.
— Acenda uma fogueira bem pequena. Estamos mais ou menos protegidos aqui e acho que podemos cor-rer esse risco. E, Will — ele acrescentou, erguendo a voz para ser ouvido com clareza —, se esse bandido fizer ou-tro movimento para fugir, você dá uma flechada na perna dele?
Carney, que tinha aproveitado a oportunidade da repentina chegada de Evanlyn para começar a rastejar em silêncio na direção das pedras, ficou paralisado onde esta-va. Gilan o olhou furioso e então reviu as ordens.
— Pensando melhor, você acende o fogo, Will. Horace, amarre esses dois.
Os dois garotos se moveram rapidamente para rea-lizar as tarefas recebidas. Satisfeito por ver tudo sob con-trole, Gilan tirou a capa e a colocou em volta da menina. Ela tinha coberto o rosto com as duas mãos e seus om-bros ainda tremiam, embora ela não fizesse nenhum ruído. Ele a abraçou e, murmurando com suavidade, garantiu mais uma vez que ela estava em segurança.
Aos poucos, os soluços silenciosos e atormentados diminuíram e a respiração da menina ficou mais tranquila. Will, ocupado em aquecer uma panela de água para uma bebida quente, olhou para ela um tanto surpreso quando percebeu que tinha adormecido.
— É óbvio que ela tem passado por maus bocados — Gilan disse em voz baixa depois de pedir silêncio. — É melhor deixar ela dormir. Você pode preparar um daque-les ótimos cozidos que Halt lhe ensinou a fazer.
Em sua mochila, Will levava vários ingredientes de-sidratados que, quando colocados na água e fervidos, re-sultavam em cozidos deliciosos. Eles podiam ser aumen-tados com qualquer tipo de carne fresca e legumes que os viajantes apanhavam ao longo do caminho, mas, mesmo
sem eles, formavam uma refeição muito mais saborosa do que as rações frias que os três tinham comido naquele dia.
Ele colocou uma grande vasilha de água no fogo e logo havia um delicioso cozido de carne fervendo e en-chendo o ar frio da noite com seu aroma. Ao mesmo tempo, procurou a reduzida porção de café que levavam e colocou uma panela esmaltada cheia de água sobre as bra-sas quentes ao lado do fogo maior. Quando a água bor-bulhou e sibilou no ponto de fervura, ele levantou a tampa com uma vara bifurcada e jogou um punhado de grãos no interior. Logo, o aroma perfumado de café fresco se mis-turou com o do cozido, e todos ficaram com água na bo-ca. Mais ou menos ao mesmo tempo, os deliciosos cheiros devem ter penetrado na consciência de Evanlyn. O nariz dela se retorceu delicadamente e os fantásticos olhos ver-des se abriram. Por um ou dois segundos, eles se mostra-ram assustados, enquanto ela tentava lembrar onde estava. Ao ver o rosto tranquilizador de Gilan, ela relaxou um pouco.
— Tem alguma coisa cheirando muito bem — ela disse, e Gilan sorriu.
— Por que você não experimenta uma tigela do nosso cozido e depois nos conta o que tem acontecido nesta região?
Ele fez sinal para que Will enchesse a tigela esmal-tada com um pouco de cozido. Era a tigela de Will, pois eles não tinham utensílios de reserva. O estômago dele roncou quando percebeu que teria que esperar até que
Evanlyn terminasse para poder comer. Horace e Gilan simplesmente se serviram.
Evanlyn engoliu a saborosa refeição com um entu-siasmo que mostrava que ela não comia há dias. Gilan e Horace também se puseram a comer com satisfação. Uma voz chorosa veio da parede rochosa na outra extremidade, onde Horace tinha amarrado os dois bandidos sentados de costas um para o outro.
— Podemos comer alguma coisa, senhor? — Car-ney perguntou. Gilan mal parou entre uma colherada e outra e olhou para eles com desdém.
— É claro que não — respondeu voltando a des-frutar o jantar. Evanlyn percebeu que, fora os bandidos, somente Will não estava comendo. Ela olhou para o prato e a colher que estava segurando, olhou para os objetos semelhantes usados por Gilan e Horace e se deu conta do que tinha acontecido.
— Ah — ela disse olhando com ar de arrependi-mento para Will —, você gostaria de...? — ela ofereceu o prato esmaltado para ele.
Will ficou tentado em dividi-lo, mas percebeu que ela devia estar praticamente morrendo de fome. Apesar da oferta, sentiu que a moça esperava que recusasse. Will concluiu que havia uma diferença entre estar com fome, o que era o caso dele, e morrendo de fome, que era o caso dela, e balançou a cabeça sorrindo.
— Pode comer à vontade — ele disse. — Vou co-mer depois que você terminar.
Ele ficou um pouco desapontado quando ela não insistiu e voltou a engolir grandes colheradas do cozido, parando de vez em quando para um grande gole do café recém-coado. Enquanto ela comia, parecia que um pouco de cor voltava às suas faces. Ela limpou o prato e olhou ansiosamente para a panela que ainda pendia sobre o fogo. Will entendeu a deixa e serviu outra porção generosa de cozido para ela, e Evanlyn recomeçou a comer, mal pa-rando para respirar. Desta vez, quando o prato ficou vazi-o, ela sorriu timidamente e o devolveu para Will.
— Obrigada — ela disse simplesmente, e ele incli-nou a cabeça sem jeito.
— Tudo bem — ele murmurou enchendo o prato outra vez para si mesmo. — Você devia estar com muita fome.
— Estava, sim — ela concordou. — Acho que não comia direito há uma semana.
Gilan se ajeitou numa posição mais confortável junto da pequena fogueira.
— Por que não? — ele perguntou. — Acho que ficou muita comida nas casas. Você não podia pegar al-guma coisa?
Ela balançou a cabeça negativamente, e seus olhos mostraram o medo que a tinha dominado nas semanas anteriores.
— Eu não quis arriscar — contou. — Não sabia se havia outras patrulhas de Morgarath na região, então não tive coragem de entrar nas cidades. Encontrei alguns le-
gumes e um pedaço de queijo numa das fazendas, mas muito pouca coisa além disso.
— Acho que agora você pode nos contar o que sa-be sobre o que aconteceu aqui — Gilan pediu, e ela con-cordou com um gesto de cabeça.
— Não que eu saiba muita coisa. Como eu disse, estava aqui com... minha patroa, visitando... amigos.
Novamente, houve uma ligeira hesitação em suas palavras.
Percebendo o fato, Gilan franziu um pouco a testa.
— Suponho que a sua patroa faça parte da nobreza. A mulher de um cavaleiro ou talvez de um lorde?
— Ela é filha de... lorde e lady Caramon, do Feudo Greenfield — ela disse depressa.
Mas outra vez houve uma leve hesitação. Gilan a-pertou os lábios pensativo.
— Já ouvi esses nomes — ele disse. — Mas acho que não os conheço.
— Seja como for, ela estava aqui visitando uma senhora da corte do rei Swyddned, uma velha amiga, quando as forças de Morgarath atacaram.
— Como eles conseguiram isso? — ele perguntou franzindo a testa mais uma vez. — É impossível atraves-sar os penhascos e a fenda. Não se pode fazer que um e-xército desça os rochedos, muito menos que passe sozi-nho pelo desfiladeiro.
Os penhascos se erguiam do lado extremo da fen-da, formando a fronteira entre Céltica e as Montanhas da
Chuva e da Noite. Eles eram feitos de puro granito e ti-nham vários metros de altura. Não havia passagens, não havia como subir ou descer, certamente não para um grande número de soldados.
— Halt diz que não existe lugar impossível de atra-vessar — Will argumentou. — Especialmente se você não se importa em perder vidas na tentativa.
— Encontramos um pequeno grupo de celtas que fugiam para o sul — a menina contou. — Eles nos disse-ram que os Wargals conseguiram. Eles usaram cordas e escadas para escalada e desceram os penhascos à noite, em pequenos grupos. Encontraram saliências estreitas, então usaram as escadas para atravessar a fenda. Eles escolhe-ram o ponto mais distante que puderam encontrar e assim passaram sem ser vistos. Durante o dia, os que já tinham atravessado a fenda se esconderam entre as rochas e vales até que toda a tropa estivesse reunida. Não precisavam de muitos soldados, pois o rei Swyddned não mantinha um grande exército na corte.
Gilan soltou um gemido de desaprovação e olhou para Will.
— Pois deveria manter. O tratado obriga ele a fazer isso. Você se lembra do que falamos sobre as pessoas fi-carem mais tolerantes? Os celtas preferem cavar seu solo a defender ele.
Ele fez um gesto para que a garota continuasse.
— Os Wargals invadiram o interior e se concentra-ram nas minas em especial. Por algum motivo, queriam os mineiros vivos. Todos os outros foram mortos.
— Pordellath e Gwyntaleth estão totalmente de-sertas — ele contou. Você tem ideia do lugar para onde as pessoas possam ter ido?
— Muitas pessoas das cidades fugiram — ela res-pondeu. — Todas foram para o sul. Parece que os War-gals fizeram que fossem nessa direção.
— Acho que faz sentido — Gilan comentou. — Manter elas agrupadas no sul evita que a notícia se espalhe por Araluen.
— Foi o que o capitão de nosso grupo disse — Evanlyn concordou. — O rei Swyddned e a maior parte dos sobreviventes de seu exército recuaram para a costa sudoeste para formar uma linha de defesa. Os celtas que conseguissem fugir dos Wargals se encontrariam com ele lá.
— E você? — Gilan indagou.
— Estávamos tentando escapar para a fronteira quando fomos bloqueados por um grupo de combate — ela explicou. — Nossos homens os mantiveram afastados enquanto minha senhora e eu escapamos. Estávamos quase livres quando o cavalo dela tropeçou, e eles a apa-nharam. Eu quis voltar para ajudá-la, mas ela gritou para que eu fugisse. Não pude... eu quis ajudá-la, mas... eu só...
Lágrimas começaram a escorrer outra vez. Ela pa-recia não notar e não tentou secá-las. Ficou apenas o-
lhando em silêncio para o fogo enquanto o horror dos acontecimentos voltava à sua lembrança. Quando falou de novo, sua voz era quase inaudível.
— Consegui fugir e voltei para olhar. Eles esta-vam... eles estavam... vi quando eles... — a voz dela sumiu.
Gilan se inclinou e apanhou a mão dela.
— Não pense nisso — ele disse com delicadeza, e ela olhou para ele com gratidão. — Acho que depois... disso... você fugiu para as colinas?
Ela fez que sim várias vezes. As lembranças das cenas terríveis ainda estavam bastante vivas. Will e Horace estavam sentados em silêncio. Will se virou para o amigo, e os dois trocaram um olhar de compreensão. Evanlyn ti-nha tido sorte em escapar.
— Estou me escondendo desde então — ela con-tou em voz baixa. — Meu cavalo começou a mancar há dez dias e eu o soltei. Por isso, tenho andado na direção do norte durante a noite e me escondido de dia.
Ela apontou para Bart e Carney, amarrados como dois frangos cativos do outro lado da clareira.
— Vi esses dois algumas vezes e outros como eles. Mas não deixei que me vissem. Achei que não podia con-fiar neles.
Carney mostrou uma expressão magoada. Bart ain-da estava tonto demais por causa da pancada que Horace tinha lhe dado com a lateral da espada, por isso não se in-teressou no que estava acontecendo.
— Então vi vocês três hoje cedo do outro lado do vale e reconheci você como um dos arqueiros do rei... Bem, na verdade, dois de vocês — ela corrigiu. — E não pude fazer outra coisa senão agradecer a Deus.
Gilan olhou preocupado para ela quando disse isso. Ela não percebeu a reação e continuou a falar.
— Levei quase o dia todo para alcançar vocês. Não era assim tão longe, mas não havia um caminho para a-travessar o vale. Tive que dar uma volta enorme, subir e descer as colinas e me apavorei ao pensar que vocês talvez não estivessem mais aqui quando eu chegasse. Mas, feliz-mente, vocês estavam — ela acrescentou sem necessidade.
Will estava inclinado para a frente, o cotovelo no joelho e a mão sustentando o queixo, tentando assimilar tudo o que ela tinha contado.
— Por que Morgarath ia querer mineiros? — ele perguntou a quem quisesse responder. — Ele não tem minas, portanto isso não faz sentido.
— Será que encontrou alguma? — Horace sugeriu. — Talvez tenha encontrado ouro nas Montanhas da Chuva e da Noite e precise de escravos para explorar elas.
Gilan mordiscava a unha do polegar pensando no que Horace tinha dito.
— Pode ser — ele falou finalmente. — Vai precisar de ouro para pagar os escandinavos. Talvez esteja extra-indo o próprio ouro.
Evanlyn se sentou com o corpo ereto ao ouvir falar dos lobos do mar.
— Escandinavos? — ela perguntou. — Agora eles são aliados de Morgarath?
— Eles estão preparando alguma coisa — Gilan a-firmou. — Todo o reino está alerta. Nós estávamos tra-zendo mensagens de Duncan para o rei Swyddned.
— Vocês vão ter que ir para o sudoeste para en-contrá-lo — Evanlyn declarou.
Will percebeu que ela se assustou um pouco ao ou-vir o nome do rei Duncan.
— Mas duvido que ele deixe suas posições de de-fesa ali.
— Acho que isso é mais importante do que levar mensagens para Swyddned — Gilan disse. — Afinal, o principal motivo delas era avisar o rei que Morgarath tinha entrado em ação. Acho que ele já sabe disso agora.
Ele se levantou, enquanto se espreguiçava e boce-java. Já estava totalmente escuro.
— Sugiro que tenhamos uma boa noite de sono e comecemos a viagem para o norte pela manhã. Vou mon-tar guarda primeiro, então você pode ficar com minha ca-pa, Evanlyn. Vou usar a de Will quando ele me substituir.
— Obrigada — a moça disse simplesmente, e to-dos os três entenderam que ela se não se referia apenas ao uso da capa.
Will e Horace foram cochilar junto do fogo en-quanto Gilan apanhava o arco e ia até um monte de ro-chas que lhe dava uma boa visão da trilha que levava ao acampamento.
Enquanto Will ajudava Evanlyn a arrumar um lugar para dormir, ele ouviu a voz chorosa de Carney mais uma vez.
— Senhor, por favor, poderia afrouxar um pouco as cordas para passarmos a noite? Elas estão muito aper-tadas.
— Claro que não — Gilan retrucou indiferente. E então ele subiu nas rochas para assumir o primeiro turno da vigília.

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