segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Capitulo 1 - Rangers Ordem dos Arqueiros VOL 1


— Tente comer alguma coisa, Will. Afinal, amanhã é um grande dia.
Jenny, loira, bonita e alegre, fez um gesto na direção do prato quase intocado de Will e sorriu para ele, encorajando-o. Will tentou retribuir o sorriso, mas não conseguiu. Ele remexeu o prato que tinha à sua frente, cheio de suas comidas favoritas. Naquela noite, por causa da tensão e da expectativa, Will quase não conseguia engolir uma garfada.
Ele sabia bem demais que o dia seguinte seria muito especial, o mais importante da sua vida, pois era o Dia da Escolha, que iria determinar como passaria o resto dos seus dias.
— Acho que é o nervosismo — disse George, abaixando o garfo cheio e ajeitando a lapela do casaco com ar de quem sabia o que estava falando.
Ele era um garoto magro, desengonçado e estudioso, fascinado por regras e regulamentações e com inclinação a examinar e discutir os dois lados de qualquer questão, às vezes durante horas.
— O nervosismo é uma coisa assustadora. Ele pode deixar você paralisado e impedi-lo de pensar, comer e falar.
— Não estou nervoso — Will retrucou depressa, notando que Horace tinha levantado a cabeça, pronto para deixar escapar um comentário sarcástico.
George balançou a cabeça várias vezes, pensando na declaração de Will.
— Por outro lado — acrescentou — um pouco de nervosismo pode até melhorar o desempenho. Ele pode aumentar as suas percepções e aguçar suas reações. Assim, pode-se dizer que o fato de você estar preocupado, se é que realmente está, não é, necessariamente, algo com que se preocupar.
Mesmo sem querer, um sorriso irônico surgiu nos lábios de Will. George seria um ótimo advogado. Ele certamente seria escolhido pelo escriba na manhã seguinte.
Talvez esse fosse o problema de Will. Ele era o único dos protegidos que tinha receios quanto à Escolha que iria ocorrer dali a doze horas.
— Ele deveria estar nervoso — Horace zombou. — Afinal, que mestre iria querê-lo como aprendiz?
— Tenho certeza de que todos estamos nervosos — Alyss disse, dirigindo um de seus raros sorrisos para Will. — Seria tolice não estar.
— Pois bem, eu não estou — Horace retrucou, corando quando Alyss o olhou com desconfiança e Jenny riu.
“Alyss sempre age assim”, Will pensou. Ele sabia que lady Pauline, chefe do Serviço Diplomático do Castelo Redmont, tinha prometido a posição de aprendiz à garota graciosa e alta. O fato de fingir nervosismo por causa do dia seguinte e o tato para não chamar atenção para a gafe de Horace mostravam que ela já tinha algumas habilidades como diplomata.
Jenny, é claro, iria imediatamente para a cozinha, domínio de mestre Chubb, cozinheiro chefe. Ele era um homem famoso em todo o reino pelos banquetes servidos na imensa sala de jantar do castelo, Jenny adorava cozinhar e tudo o que se referia à comida. Sua natureza calma e seu inesgotável bom humor fariam dela um membro valioso para a equipe na agitação das cozinhas do castelo.
A escolha de Horace seria a Escola de Guerra. Will olhou para o colega, que atacava avidamente a pilha de peru assado, presunto e batatas que estava amontoada no prato. Horace era grande para a idade e um atleta nato. As chances de ele ser recusado quase não existiam. Horace era exatamente o tipo de recruta que sir Rodney procurava para aprendiz de guerra: forte, atlético, em boa forma. “E não muito inteligente”, Will pensou com certa amargura.
A Escola de Guerra era a melhor maneira de se tornar um cavaleiro para garotos como Horace nascidos no povo, mas com habilidades físicas para servir como cavaleiros do Reino.
E aí sobrava Will. Qual seria a sua escolha? Como Horace tinha comentado, o mais importante era saber que mestre de ofício iria aceitá-lo como aprendiz.
O Dia da Escolha era o momento principal na vida dos protegidos do castelo. Eles eram órfãos educados pela generosidade do barão Arald, o senhor do feudo Redmont. A maioria tinha perdido os pais a serviço do feudo, e o barão assumiu a responsabilidade de cuidar das crianças de seus ex-súditos e de lhes dar a oportunidade de melhorar a vida sempre que possível.
O Dia da Escolha proporcionava essa chance.
Todos os anos, os protegidos que completavam 15 anos podiam se candidatar a aprendizes dos mestres de vários ofícios que serviam o castelo e seus habitantes. Geralmente, os aprendizes eram selecionados de acordo com as ocupações dos pais ou por influência dos mestres de ofício. Os protegidos do castelo normalmente não possuíam tal influência, e aquela era a chance de conquistar um futuro melhor.
Os protegidos que não eram escolhidos ou para quem não havia vagas seriam destinados a fazendeiros na vila próxima para trabalhar nas plantações e cuidar dos animais que alimentavam os habitantes do castelo. Will sabia que isso raramente acontecia. O barão e seus mestres de ofício geralmente faziam de tudo para encaixar os rapazes em alguma profissão. Mas isso talvez não acontecesse, e esse era o destino que ele mais temia.
Horace o estava observando e lhe lançou um olhar presunçoso.
— Você ainda pensa em se candidatar à Escola de Guerra, Will? — ele perguntou com a boca cheia de peru e batatas. — Então é melhor comer alguma coisa. Você precisa desenvolver um pouco esses músculos.
Ele soltou um riso rouco, e Will o olhou irritado.
Algumas semanas antes Horace tinha ouvido Will confidenciar a Alyss que queria desesperadamente ser escolhido para a Escola de Guerra e, desde então, tinha tornado a vida dele um inferno, mostrando em todas as ocasiões possíveis que o corpo magro de Will era totalmente inadequado para os rigores do treinamento da escola.
O fato de que Horace provavelmente estava certo só piorava as coisas. Horace era alto e musculoso, enquanto Will era baixo e magro, ele era ágil, rápido e surpreendentemente forte, mas simplesmente não tinha o tamanho exigido para os aprendizes de Escola de Guerra.
Apesar de tudo, esperou que nos últimos dias tivesse o que as pessoas chamavam de “arrancada no crescimento”, antes da chegada do Dia da Escolha. Mas isso não acontecera, e agora o dia estava próximo.
Como Will não respondeu, Horace percebeu que tinha marcado um ponto, o que era uma raridade em sua relação turbulenta. Nos últimos anos, ele e Will tinham entrado em choque várias vezes. Por ser mais forte do que o colega, Horace normalmente se saía melhor, embora algumas poucas vezes a velocidade e agilidade de Will tivessem lhe permitido desferir um chute ou soco surpresa e então escapar antes que Horace pudesse alcançá-lo.
Embora Horace geralmente se saísse melhor nos confrontos físicos, raramente vencia algum de seus embates verbais. A mente de Will era tão ágil quanto o seu corpo, e ele quase sempre conseguia dar a última palavra. Na verdade, era essa tendência que muitas vezes causava problemas entre os dois: Will ainda tinha que aprender que dar a última palavra nem sempre era uma boa ideia.
Horace decidiu então se aproveitar da vantagem ganha.
— Você precisa de músculos para entrar na Escola de Guerra, Will. Músculos de verdade — ele afirmou, olhando para os colegas ao redor da mesa para ver se alguém discordava.
Os demais protegidos, pouco à vontade diante da crescente tensão entre os dois, concentraram-se em seus pratos.
— Principalmente entre as orelhas — Will retrucou e, infelizmente, Jenny não conseguiu deixar de rir.
Horace corou e começou a levantar da mesa. Mas Will foi mais rápido e já estava na porta antes que o colega pudesse se livrar da cadeira e soltar um último insulto.
— Isso mesmo! Fuja, Will Sem-nome! Você é um sem-nome e ninguém vai querer você como aprendiz!
Da antessala, Will escutou os risos e sentiu o sangue subir ao rosto. Ele detestava esse tipo de zombaria, mas, para não dar mais uma arma para Horace, evitava deixar que o colega percebesse isso.
A verdade era que ninguém sabia o sobrenome de Will. Nem ele mesmo sabia quem tinham sido seus pais. Ao contrário dos colegas, que tinham vivido no feudo antes da morte dos pais e cuja história familiar era conhecida, Will tinha aparecido ainda recém-nascido, aparentemente do nada. Fora encontrado embrulhado em um pequeno cobertor, dentro de um cesto, nas escadas do prédio dos protegidos há quinze anos. Um bilhete estava preso ao cobertor e dizia apenas:

Sua mãe morreu no parto.
O pai morreu como herói.
Por favor, cuidem dele. Seu nome é Will.

Naquele ano, tinha havido somente mais uma protegida. O pai de Alyss era um tenente da cavalaria que morreu na batalha de Hackman Heath, quando o exército de Wargals de Morgarath foi derrotado e expulso para as montanhas. A mãe de Alyss, arrasada pela dor, morreu devido a uma febre algumas semanas depois de dar à luz.
Assim, havia bastante espaço para a criança desconhecida, e o barão Arald era, no fundo, um homem generoso. Mesmo que as circunstâncias fossem incomuns, ele tinha dado permissão para que Will fosse aceito como protegido no Castelo Redmont. Parecia lógico pressupor que, se o bilhete era verdadeiro, o pai de Will tinha morrido na guerra contra Morgarath. Como o barão Arald tinha tomado parte importante nessa batalha, sentiu-se no dever de honrar o sacrifício do pai desconhecido.
Assim, Will se tornou um protegido de Redmont e foi criado e educado devido à generosidade do barão. À medida que o tempo passou, outros além de Alyss se juntaram a ele, até que havia cinco crianças da mesma idade.
Mas, ao passo que os outros tinham lembranças dos pais ou, no caso de Alyss, havia pessoas que os tinham conhecido e que podiam falar sobre eles, Will nada sabia de seu passado.
Foi por esse motivo que inventou a história que o tinha sustentado durante toda a infância naquela divisão do castelo. E, quando os anos passaram e acrescentou detalhes e cores à história, até que começou a acreditar nela.
Will sabia que o pai tinha morrido como herói, portanto tinha sentido criar para ele uma imagem de ídolo – um guerreiro dentro de uma armadura brilhante que lutou contra as hordas de Wargals, combatendo-as de todas as formas possíveis até ser derrotado pelo peso da maioria. Tinha imaginado a figura alta do pai várias vezes, visto cada detalhe da armadura e de suas armas, mas sem nunca poder ver o seu rosto.
Como guerreiro, o pai iria querer que ele seguisse os seus passos. Por esse motivo, a seleção para a Escola de Guerra era tão importante para Will e, quanto mais improvável se tornava a sua escolha, mais ele se agarrava à esperança de que seria selecionado.
Ele saiu do prédio dos protegidos para a escuridão do pátio do castelo. O sol já tinha sumido fazia tempo e as tochas colocadas a cada 20 metros nas paredes lançavam uma luz trêmula e irregular. Ele hesitou um momento. Não iria voltar ao edifício e enfrentar os insultos contínuos de Horace. Fazer isso somente provocaria outra briga que Will provavelmente perderia. George certamente tentaria analisar a situação examinando os dois lados da questão. Will sabia que Alyss e Jenny talvez tentassem consolá-lo, principalmente Alyss, já que tinham crescido juntos. Mas naquele momento ele não queria a compreensão delas e não poderia enfrentar as zombarias de Horace, portanto se dirigiu para o único lugar em que poderia ficar sozinho.
A enorme figueira que crescia perto da torre central do castelo tinha lhe oferecido refúgio muitas vezes. Ele não tinha medo de altura e escalou a árvore com tranquilidade, continuando quando outros teriam parado, até chegar ao topo em que os galhos balançavam e se dobravam sob o seu peso. No passado, muitas vezes tinha escapado de Horace ali. O garoto maior não era tão rápido quanto Will e não estava disposto a segui-lo tão alto. Will encontrou uma forquilha conveniente e instalou-se nela, deixando o corpo se acostumar ao movimento da árvore enquanto os galhos balançavam na brisa da noite. Lá embaixo, os vultos diminutos dos vigias cumpriam a sua ronda no pátio do castelo.
Ele ouviu a porta do edifício se abrir. Ao olhar para baixo, viu Alyss procurá-lo, em vão, pelo pátio. A menina alta hesitou alguns instantes e então, parecendo dar de ombros, voltou para dentro. O retângulo de luz alongado que a porta aberta jogou no pátio desapareceu quando ela a fechou devagar.
“As pessoas raramente olham para cima”, ele pensou.
Houve um leve bater de penas macias, e uma coruja pousou num galho próximo, girando a cabeça para captar os últimos raios da luz fraca com os olhos. Ela estudou o garoto sem preocupação, parecendo saber que não precisava ter medo dele. Era uma caçadora, uma voadora silenciosa, dona da noite.
“Pelo menos você sabe quem é”, ele disse baixinho para o pássaro. A coruja virou a cabeça outra vez e se jogou na escuridão, deixando Will sozinho com seus pensamentos.
Gradativamente, enquanto estava ali sentado, as luzes do castelo se apagaram, uma a uma. As tochas queimaram até o fim e foram substituídas à meia-noite na troca da guarda. Por fim, restou somente a luz do gabinete do barão, onde o lorde de Redmont ainda trabalhava, revendo relatórios e documentos. O gabinete estava praticamente no mesmo nível que Will, e ele podia ver o vulto musculoso do barão sentado à mesa. Finalmente, o barão Arald se levantou, espreguiçou-se e se inclinou para a frente para apagar a lamparina ao sair do aposento e se dirigir ao quarto de dormir no andar superior. Agora o castelo estava adormecido, exceto pelos guardas junto das paredes, que mantinham vigília constante.
Will se deu conta de que em menos de nove horas enfrentaria a Escolha. Silenciosamente, sofrendo, temendo o pior, desceu da árvore e dirigiu-se para a sua cama no escuro dormitório dos garotos. 

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